sábado, 21 de dezembro de 2024

O PRIMEIRO MILAGRE DO AMOR

 O PRIMEIRO MILAGRE DO AMOR

"Então o Senhor Deus fez cair um sono pesado sobre Adão, e este adormeceu; e tomou uma das suas costelas, e cerrou a carne em seu lugar; e da costela que o Senhor Deus tomou do homem, formou uma mulher, e trouxe-a a Adão. E disse Adão: Esta é agora osso dos meus ossos, e carne da minha carne; esta será chamada mulher, porquanto do homem foi tomada. Portanto deixará o homem o seu pai e a sua mãe, e apegar-se-á à sua mulher, e serão ambos uma carne."

Gênesis 2.21-24

    Há uma beleza singular na poesia da criação. Não são textos literais. A preocupação não é com a literalidade, mas com a teologia e a beleza poética. Bem característico dos textos judaicos, como os livros dos Salmos e Cantares de Salomão. No Gênesis, a maior intenção do autor é deixar claro que “no princípio, Deus”. E quando Deus deixa de estar no princípio, as coisas dão errado, bem erradas, vide o que fizeram Adão e Eva no jardim, ou Caim com seu irmão, ou ainda os homens na grande torre do capítulo 11.

    Contudo, quando o princípio está e vem de Deus, há santidade, vida e ordem. Assim é a união matrimonial. Os mais atentos perceberão que o autor credita a Deus a ideia do casamento. Adão não pediu uma companheira. Estava ele no jardim, com toda fauna e flora ao seu dispor. Mas o poeta registra algo: a primeira vez que Deus percebe algo que não estava bom em sua criação foi, justamente, na humanidade. Para que Adão tivesse a imagem e semelhança do seu Criador, ele não poderia estar só. O Eterno afirmou: “Não é bom que o homem esteja só”. Faltava-lhe algo, ele não estava completo.    

Mas uma questão surge: pode o Senhor fazer algo que não seja bom? Lógico que não. Então, o que significam essas palavras? Na verdade, a humanidade não estava completa ainda. Semelhante a algo que ainda não alcançou a sua plenitude, que ainda não amadureceu o suficiente, que não alcançou a forma final, ainda não estava bom. Foi justamente depois da criação de Eva que a humanidade ficou completa.

    É justamente nessa experiência que a humanidade testemunha o primeiro milagre de Deus: dois se tornam um. O casamento é um milagre. São duas pessoas, dois corpos, duas histórias, muitos sonhos, vontades e quereres que, voluntariamente, se unem e decidem fazer de tudo isso algo comum, por isso um milagre. A poesia bíblica nos ensina que o casamento é o primeiro milagre realizado pelo amor.

    Quando Adão exclama “essa sim, é osso dos meus ossos e carne da minha carne”, ele está relatando uma evidência: ela sou eu. Não há mais dois, mas um só. Daí o grande paradoxo que o grande Camões, certamente inspirado no texto bíblico, sobretudo no capítulo 13 da primeira carta aos Coríntios, escreveu seu soneto 11:

"Amor é fogo que arde sem se ver
É ferida que dói e não se sente;
É um contentamento descontente,
É dor que desatina sem doer.

É um não querer mais que bem querer;
É solitário andar por entre a gente;
É nunca contentar-se de contente;
É um cuidar que se ganha em se perder.

É querer estar preso por vontade;
É servir a quem vence, o vencedor;
É ter com quem nos mata lealdade.

Mas como causar pode seu favor
Nos corações humanos amizade,
Se tão contrário a si é o mesmo Amor?"

    Alguém poderia dizer que tudo isso é contraditório, mas não é, é apenas paradoxal. O amor é exatamente isso, e quero comentar apenas três frases desse belíssimo soneto:

"Amor é fogo que arde sem se ver" – O amor é descrito como uma força intensa, mas invisível. A imagem do fogo simboliza a paixão e o desejo, que consomem sem ser necessariamente percebidos externamente. É uma metáfora para as emoções que queimam no interior.

"É um não querer mais que bem querer" – O amor é um desejo tão profundo que, paradoxalmente, quem ama não quer nada além de amar. É um anseio que se basta em si mesmo. Aliás, Tim Maia cantou: 

"A semana inteira/
Fiquei esperando/
Pra te ver sorrindo/
Pra te ver cantando/
Quando a gente ama/
Não pensa em dinheiro/
Só se quer amar,
se quer amar, se quer amar."

"É querer estar preso por vontade" – O amor é uma prisão que o amante escolhe, porque sente prazer em se submeter a ela. É um paradoxo: a liberdade é sacrificada voluntariamente em nome do amor.

    Portanto, por mais que o casamento esteja tão banalizado, desacreditado e, não raras vezes, seja motivo de chacota, ele ainda é, para os que têm a felicidade de experimentá-lo como um milagre de Deus, uma experiência de amor, profundo amor. Primeiramente de Deus, mas também daqueles que se amam.

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