sexta-feira, 27 de dezembro de 2019

"O Cântico de Maria" -Um louvor sobre política, economia, opressão e a misericórdia de Deus em pleno Natal

UM NATAL DE MISERICÓRDIA

“Disse então Maria:

A minha alma engrandece ao Senhor, e o meu espírito se alegra em Deus meu Salvador; Porque atentou na baixeza de sua serva; Pois eis que desde agora todas as gerações me chamarão bem-aventurada, porque me fez grandes coisas o Poderoso; E santo é seu nome.

E a sua misericórdia é de geração em geração sobre os que o temem.
Com o seu braço agiu valorosamente; dissipou os soberbos no pensamento de seus corações. Depôs dos tronos os poderosos, E elevou os humildes.

Encheu de bens os famintos, E despediu vazios os ricos. Auxiliou a Israel seu servo, recordando-se da sua misericórdia; como falou a nossos pais, para com Abraão e a sua posteridade, para sempre.

E Maria ficou com ela quase três meses, e depois voltou para sua casa.”

(Lucas 1:46-56)

O nascimento de Jesus é muito mais do que um evento religioso.

As implicações do Natal do Cristo de Nazaré, atinge, em cheio, questões religiosas, sociais, éticas, políticas e econômicas. Os evangelhos registram que Jesus nasceu em Belém da Judéia, no tempo em que Herodes era o rei de Israel.


Dois sumo-sacerdotes exerciam o poder no templo de Jerusalém, Caifás e seu sogro, Anás. Jesus era filho de Maria, uma jovem prometida a um carpinteiro chamado José, da linhagem de Davi e, apesar de estarem em Belém da Judeia, moravam numa vila pobre de camponeses, na província da Galileia, chamada Nazaré.

Não podemos desconsiderar essas informações sobre Jesus e o contexto do seu nascimento. Todas essas questões são tão importantes que, quando o apóstolo Paulo falou do cumprimento da promessa, na vinda do Messias, ele se refere a um tempo oportuno, ou, na plenitude dos tempos. (Gl.4.4; 2 Co.6.2 citando Is. 49.8). Deus levou em consideração o domínio Romano, toda a turbulência interna e externa a Israel, os anos de opressão e exploração em que a Galileia passou, o preconceito étnico e social que Samaria sofria e toda a corrupção político-religiosa da Judeia. 

Maria estava muito atenta a tudo isso, e de forma profunda e extremamente precisa, ousadamente, apontou, em seu cântico, como o Senhor resiste e reprova toda opressão, violência e corrupção dos homens, e como, num ato de misericórdia, socorre os que acreditam e confiam Nele. 

Vermos isso em cinco partes.

“Então disse Maria: "Minha alma engrandece ao Senhor e o meu espírito se alegra em Deus, meu Salvador.” (vs. 46,47)

Apesar de Maria falar na primeira pessoa “...meu salvador”, a fala dela é o eco da voz de todas as mulheres de Israel. Esse é o único discurso longo de uma mulher no Novo Testamento, e um dos maiores em toda a Escritura. Maria apresenta Deus como o Salvador de todos os oprimidos e, em especial aqui, de todas as mulheres. 

Esse cântico encontra precedentes em outros Cânticos do Antigo Testamento, onde se cantam a atuação misericordiosa, graciosa e poderosa de Deus em libertação do seu povo. (Mirian Êx 15; Débora Jz 5; Ana ISm 1). 

Esse cântico de Maria nos desafia a não aceitar pacificamente nenhuma estrutura de opressão. Historicamente as mulheres têm sofrido diversas formas de violência em nossa sociedade: Violência doméstica e obstétrica; assédios nos ambientes de trabalho e nas ruas; discriminadas e preteridas em suas profissões e carreiras acadêmicas. Esses são apenas alguns exemplos das inúmeras situações em que as mulheres são expostas, apenas pelo fato de serem mulheres. Mas o que Maria afirma em seu cântico, é que Deus não aprova nenhuma forma de abuso ou opressão, nem mesmo aquelas disfarçadas de piedade e zelo religioso.   

“pois atentou para a humildade da sua serva. De agora em diante, todas as gerações me chamarão bem-aventurada, pois o Poderoso fez grandes coisas em meu favor; santo é o seu nome.” (vs 48, 49).

A palavra baixeza, ou humildade (gr. tapéinosis), é usada muitas vezes no Antigo Testamento Grego (A vulgata Latina), para fazer referência a humilhação social e política que Israel sofria sob a dominação de potências estrangeiras (Dt 26.7; ISm 9.16).

Encontramos algumas semelhanças na atuação de Maria com ícones importantes do Antigo Testamento como Abraão e Moises. Assim como Abraão que, pela fé, deu início a peregrinação do povo de Deus no Antigo Testamento, e por isso foi chamado de “O Pai da Fé”, Maria deu início a caminhada do povo no Novo Testamento com um chamado de fé, é isso que Isabel diz: “Bem-aventurada a que creu, pois hão de cumprir-se as coisas que da parte do Senhor lhe foram ditas.” [Lc 1:45].

Já o título do “grande libertador” do Antigo Testamento, está com Moisés. É lógico que estamos falando aqui de uma libertação político-econômico-social e não há como comparar a atuação de Moisés com a de Jesus. Sendo assim, qualquer atuação no Novo Testamento é ofuscada pela glória única do Filho de Deus. Porém, se compreendermos que Moisés foi apenas um instrumento de atuação do Poder Divino, e que o grande Libertador mesmo é o próprio Deus, podemos assemelhar a sua atuação a Maria que compreendeu isso dizendo: “Eis aqui a serva do Senhor; cumpra-se em mim segundo a tua palavra.” [Lc 1:38]

Portanto, assim como há espaço na tradição Judaico-Cristã para Abraão e Moisés, deve haver de igual modo para Maria, como serva importante da atuação de Deus na história da redenção, tanto pela sua fé, quanto pela sua obediência.

“A sua misericórdia estende-se aos que o temem, de geração em geração. Ele realizou poderosos feitos com seu braço; dispersou os que são soberbos no mais íntimo do coração.” (vs 50,51)

Essa expressão: “...agiu com o seu braço agiu valorosamente”, é usada no Antigo Testamento para indicar o agir de Deus a favor do seu povo, especialmente em relação ao êxodo, e mais uma vez, Maria se aproxima de Moisés quando Deus a usa como um instrumento precioso nesse processo de libertação do seu povo.

“Depôs dos tronos os poderosos, e elevou os humildes. Encheu de bens os famintos, e despediu vazios os ricos.” (vs. 52,53)

Havia, na tradição do judaísmo popular do tempo de Jesus, uma oração onde um judeu agradecia a Deus todos os dias por não ter nascido mulher, não ter nascido cachorro e não ter nascido samaritano. Acredito que a partir daqui ficaria difícil tal comparação.

O Deus poderosos age em favor dos humilhados e oprimidos, contra as forças socio religiosas e político-econômicas que se opõe ao seu projeto, subvertendo a estrutura da sociedade que perpetua tais distinções. O Evangelho do Reino é a Boa Nova de salvação que desfaz qualquer mecanismo opressor. Seja étnico, social ou de gênero, em Jesus Deus faz uma nova humanidade:

“Todos vocês são filhos de Deus mediante a fé em Cristo Jesus, pois os que em Cristo foram batizados, de Cristo se revestiram. Não há judeu nem grego, escravo nem livre, homem nem mulher; pois todos são um em Cristo Jesus. E, se vocês são de Cristo, são descendência de Abraão e herdeiros segundo a promessa.” (Gl.3.26-29).

Auxiliou a Israel seu servo, recordando-se da sua misericórdia; Como falou a nossos pais, para com Abraão e a sua posteridade, para sempre.” (vs. 54,55)

O Magnificat, ou o Cântico de Maria, é esse grande cântico libertador de marca o início do Reino de Deus. É um documento revolucionário e intenso, produzido por uma mulher que proclama as virtudes e os valores de misericórdia, paz, justiça, humanidade, compaixão e igualdade da espécie humana (Adão, no AT). 

Aqui está um cântico de louvor ao Deus misericordioso e libertador das mulheres e dos oprimidos, explorados, cujos direitos foram e são diariamente violados. Esse cântico de Maria nos apresenta a dinâmica do Reino de Deus, inaugurado em Jesus de Nazaré, onde a economia é transformada (os poderosos são depostos e os humilhados são elevados), a violência é superada e o alimento é fornecido aos famintos. 

A espiritualidade do Natal de Jesus está na santidade, na misericórdia e na solidariedade para com os que sofrem. Nos corações em que Jesus nasce, Ele faz brotar essas coisas.



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